ASPECTOS EMOCIONAIS NA AVERSÃO ALIMENTAR EM PACIENTOS PEDIÁTICOS: interface entre Terapia da Fala e Psicologia
A alimentação é um processo complexo, que é aprendido e melhorado, dependendo das condições físicas e do desenvolvimento da criança, bem como das suas capacidades orais e sensoriais para interpretar e interagir com os alimentos. Esta função complexa envolve não só os aspectos orgânicos da criança, mas também as emoções, a motivação, o contexto ambiental social e familiar da criança e do seu cuidador (Junqueira, 2017a). Um estudo observou que 30% das crianças com desenvolvimento normal podem encontrar algum tipo de desafio neste processo (Kerzner et al, 2015), enquanto entre as crianças que têm alterações de desenvolvimento, 80% podem ser encontradas com distúrbios alimentares (Williams, Witherspoon, Kavsak, Patterson, & Mcblain, 2006).
De acordo com Junqueira (2017b), entre os fatores de risco para o desenvolvimento de dificuldades alimentares podem ser citados:
– Condições de saúde (agudas e/ou crônicas): A saúde da criança tem aspectos importantes que se refletem em suas atividades diárias, como as refeições. Para viver a experiência alimentar é necessário ter em conta o bem-estar da criança e a sua vontade de o fazer. Condições agudas de doenças orgânicas como, por exemplo, otite e irritabilidade causadas pela erupção dentária podem afectar o desenvolvimento desta fase de aprendizagem relacionada com a alimentação.
– Patologias do sistema gastrointestinal: Além do item acima mencionado, as doenças gastroesofágicas também se apresentam como condições orgânicas de saúde que precisam ser identificadas e tratadas, para que seja possível evitar danos no processo de alimentação das crianças e merecem atenção especial: uma criança com doença de refluxo gastroesofágico, por exemplo, é uma criança com dores, náuseas e vômitos. Ou seja, é uma criança que possivelmente internalizou o evento de alimentação ligado a sentimentos negativos.
– Alergias alimentares: Alguns bebés podem ter experiências traumáticas com alguns alimentos devido a reacções alérgicas e, além disso, a um início tardio de experiências orais positivas (até ao diagnóstico clínico de alergia ou intolerância a determinados alimentos), factores que também podem ter impacto no desenvolvimento alimentar da criança. Os sintomas de alergia podem dificultar tanto a introdução da primeira alimentação complementar como a aceitação da mudança de textura dos alimentos.
– Perturbações dos sistemas cardíaco e respiratório: Para garantir uma alimentação segura é necessária harmonia e coordenação entre a respiração e a deglutição. Nos lactentes, com dificuldades respiratórias, é comum que haja uma falta de coordenação durante a alimentação, então os bebés optam preferencialmente pela respiração. Alterações dos parâmetros cardiorrespiratórios em bebês com doenças cardíacas, por exemplo, reduzem o interesse pela alimentação, além desses bebês são muito manipulados e mostram, na maioria dos casos, um histórico de internações hospitalares e procedimentos diversos.
– Inabilidade ou disfunções do sistema motor oral: A boca é o centro mundial do bebé pela sua importância para a sobrevivência, ao proporcionar-lhe alimentação. O bebé usa a boca para a exploração e aprendizagem do que é seu e do que vem do ambiente externo. Todo treinamento e experiências orais vividas com os objetos que são levados à cavidade oral geram sensações que são registradas e garantem, junto com seu desenvolvimento e maturação neuromotora, uma excelente preparação para a introdução alimentar. Crianças com dificuldades de mastigação podem tornar-se selectivas, dando preferência a alimentos pastosos ou líquidos.
– A integração do sistema sensorial muda: A informação sensorial é primeiro recebida, interpretada e depois respondida através dos nossos sentidos físicos (gosto, olfacto, visão, etc.). Disfunção do processamento sensorial é um termo diagnóstico que descreve situações em que os indivíduos são incapazes de processar eficazmente e integrar a informação sensorial do ambiente. Para comer, usamos todos os sentidos físicos, e quando há alguma dificuldade na discriminação, interpretação ou modulação do input sensorial, a criança pode apresentar dificuldades significativas para aprender a comer e a relacionar-se com os alimentos. Muitas crianças com queixas de dificuldade alimentar têm desafios sensoriais, e se não for diagnosticada precocemente pode causar, com o tempo, um verdadeiro caos no desenvolvimento alimentar da criança.
– Emoções Conflituosas: Devido à importância que as emoções têm para os processos cognitivos, a aprendizagem alimentar precisa estar rodeada de situações relacionadas com segurança, cuidado e conforto. A criança precisa experimentar os alimentos, a preparação, o desenvolvimento de boas experiências com os alimentos a partir do modelo familiar, trocas e interacções com os prestadores de cuidados primários durante este tempo, para que a situação de comer seja vista como uma experiência segura e agradável. Uma criança que é forçada a comer, ou mesmo sofrendo ameaças ou barganhas relacionadas com as refeições em troca de privilégios, geralmente é uma criança que acaba de reforçar padrões negativos antes do momento da alimentação.
Nos Estados Unidos, um grupo de abordagem multidisciplinar a crianças com dificuldades alimentares, proposto por Crist e Napier Phillips em 2001, descreve um modelo biopsicossocial, no qual entendemos a perspectiva da ‘criança inteira’. Esta perspectiva inclui as áreas sensorial, motora, comportamental, emocional, física, orgânica e ambiental, todas de igual importância para a avaliação, para o diagnóstico e para o tratamento destas crianças (Crist & Napier- Phillips, 2001). A partir da criação deste modelo integrativo, os autores seguem reforçando o paradigma de um conceito ampliado para as formas de diagnóstico e tratamento de crianças com distúrbios alimentares (Toomey & Ross, 2011; Morris & Klein, 2000).
No Brasil, apesar das dificuldades alimentares terem sido identificadas há muito tempo quando se trata de pacientes pediátricos, há um cenário de falta de estudos e dados sobre estes pacientes. Atualmente, a incidência de distúrbios de deglutição e dificuldades alimentares em crianças está aumentando, principalmente devido ao aumento das taxas de sobrevida de bebês prematuros com baixo peso ao nascer e história clínica complexa, que passaram por uma variedade de procedimentos e intervenções (Lefton-Greif & Arvedson, 2007). Junqueira (2017b) propõe seis premissas para o tratamento de crianças com aversão alimentar: identificar e tratar as causas orgânicas, educar os pais, apoio emocional às mães, desenvolvimento normal para a sequência de aprendizagem emocional, assegurar habilidade e conforto ao ter comida e estratégias lúdicas para levar a comida à rotina da criança. Todas estas premissas reforçam a importância do vínculo parental, a atenção e a disponibilidade para a criança. Segundo a autora, a partir destes fatores podem ser identificados os primeiros sinais de aversão alimentar (Junqueira, 2017a).
Na prática clínica, observa-se que muitos pais afirmam sentir-se despreparados e ansiosos com o distúrbio na alimentação da criança. No entanto, sabe-se que esta situação pode levar meses ou anos a normalizar-se e este contexto pode reverberar em toda a família (Hewetson & Singh, 2009). na primeira fase da alimentação da criança, na maioria dos casos, a amamentação transcende a tarefa nutricional: depende e será aumentada pela ligação entre a mãe e o bebé, pela qualidade da interacção entre ambos, bem como pela capacidade da mãe de observar os sinais dados pelo bebé, entre outros factores.
Voltando para os conceitos psicanalíticos, Melanie Klein (1996) aponta que os indivíduos desde o nascimento buscam naturalmente relações entre si, que à primeira vista, na maioria das vezes, será a mãe. Através do peito da mãe (primeiro representante da mãe como um todo para o bebê) e suas experiências com ele, que podem ser ou gratificação ou, às vezes, frustração, o bebê abre seu caminho de relação com o mundo. Neste sentido, Winnicott (2002) sublinha que, para além da tarefa nutricional, a amamentação tem uma importância particular para a interacção que ocorre neste momento: o contacto pele com pele, a troca de olhares, a percepção do cheiro, o bater do coração da mãe, mesmo que se utilize um artifício para facilitar a alimentação da criança, como por exemplo um biberão. Por sua vez, Müller, Marin e Donelli (2015) complementam trazendo a compreensão de que o momento da amamentação é uma experiência dedicada à relação mãe-filho, enquanto que a introdução da alimentação complementar pode representar um obstáculo, significando uma separação deste dyad. Assim, a introdução da alimentação complementar pode ser sentida como uma ruptura da relação entre a mãe e o bebé, e por esta razão muitas vezes implica uma dificuldade de aceitação tanto da mãe como do bebé.
Adicionado a este cenário as expectativas criadas pela mãe em relação ao seu bebé. Como Lebovici (1987), o ‘bebê imaginário’, ou seja, aquele que é ‘produto’ das representações mentais da mãe, construído a partir de suas referências sobre a maternidade e seu desejo de se tornar mãe, é diferente daquele bebê que nasce. Neste sentido, durante a gravidez, as mães sentem ansiedades, fantasias e medos em relação ao seu bebé, pois ele ainda é um ser desconhecido para ela. Este processo é de vital importância e faz parte da formação do vínculo entre a mãe e o bebê, porém, a chegada do bebê levará ao encontro da mãe com o “bebê real”, ou seja, um bebê que tem suas próprias características, desejos, capacidades e exigências. Neste encontro, é bem possível que a mãe não identifique todas as características que tinha imaginado antes e, consequentemente, surge alguma ‘decepção’ no reconhecimento do ‘bebê real’, o que exigirá dela um momento de processo de elaboração. Será importante que a mãe tenha a oportunidade de investir gradualmente na relação com o ‘verdadeiro bebé’, colocando sobre ele os seus desejos, expectativas e sentimentos, para que possa desenvolver progressivamente a perda do seu ‘bebé imaginário’ (Lebovici, 1987; Soulé, 1987). Entre os fatores que possibilitam o processo de preparação da mãe estão a saúde do bebê, as condições da gravidez e do parto e a interação mãe-infante nos primeiros meses após o nascimento (Soulé, 1987; Fleck & Piccinini, 2013).
A compreensão destes aspectos relacionados ao mundo representativo da mãe e do bebé é importante porque pode influenciar a forma como a mãe (e o pai) se relaciona e se comporta com a criança, trazendo consequências para o desenvolvimento do bebé (Stern, 1995). Entretanto, como Fleck & Piccinini (2013), existem situações como a prematuridade citada pelos autores, mas também podemos pensar nos casos de pacientes com aversão alimentar, que contribuem para um confronto muito grande entre o que foi imaginado e desejado pela mãe com o que é vivenciado na realidade. Um dos pontos cruciais para o estreitamento da relação mãe-filho e a reconciliação do ‘bebê imaginário’ com o ‘bebê real’, segundo os autores acima citados, foi o abandono da intervenção profissional no contato mãe-filho.
Do ponto de vista da criança, a formação de um sintoma orgânico, como a aversão ou recusa alimentar, também pode ser entendida como a resposta de um bebê devido à sua insatisfação em relação à interação com sua mãe. Nos casos em que a causa é emocional, mas o sintoma é orgânico, estamos falando de sintomas psico-funcionais em bebês (Donelli, 2011; Feliciano & Souza, 2011). Entre os sintomas psico-funcionais mais freqüentes na primeira infância estão sono, alimentação, distúrbios digestivos e gástricos, respiratórios, cutâneos e comportamentais (Batista-Pinto, 2004).
Seja a etiologia de origem orgânica ou emocional, sabe-se, no entanto, que há casos em que as mudanças dietéticas inevitavelmente requerem intervenções de profissionais de saúde para a reabilitação da criança. Neste contexto, deve ser considerada uma atenção especial à forma de entrada do profissional, ou da terapia escolhida, para que o processo de ligação entre mãe e filho não seja afetado e assim as chances de resistência desta dupla sejam reduzidas durante o curso de tratamento sobre a recusa alimentar.
Como Winnicott (2002), o desenvolvimento do bebê é o resultado das relações estabelecidas por ele, especialmente com a mãe e o meio ambiente. Assim, o bebé clínico é impensável sem a presença e inclusão do seu cuidador e/ou tutor. Portanto, é essencial, que o profissional de saúde possa atuar com o objetivo de proporcionar à mãe assimilação no que diz respeito aos cuidados com o bebê, fortalecendo-o e capacitando-o a exercer os cuidados da criança, mesmo quando o profissional está ausente. Neste sentido, um trabalho centrado na educação, na autonomia e na segurança da mãe é da maior importância. Como destacam Silveira, Lunardi, Lunardi-Filho e Oliveira (2005), embora seja possível estabelecer uma relação terapêutica entre a paciente e a equipe profissional, a paciente e sua relação familiar tem um grande significado para sua recuperação.
Sabe-se que alimentar uma criança carrega uma elevada carga emocional para os pais, especialmente para a mãe, que é social e culturalmente a principal responsável pelo crescimento e bem-estar da criança (Gonçalves & Rodrigues, 1998; Müller et al, 2015). Por outro lado, a própria mãe tem a crença de que é através dos seus cuidados que a criança será melhor apoiada e por isso, mesmo que ela tenha a possibilidade de contar com a assistência de outros membros da família, ela ainda acredita que seria melhor a sua companhia com as crianças hospitalizadas (Melo & Frizzo, 2017). Assim, neste contexto em que a mãe está extremamente concentrada no cuidado das crianças, a rede de apoio e especialmente o apoio do pai do bebê desempenham um papel importante (Rapoport & Piccinini, 2011).
As mães que não conseguem alimentar seus filhos muitas vezes se sentem culpadas e criam expectativas através de crenças e sentimentos que podem atrapalhar a nutrição da criança. Portanto, nenhuma abordagem relacionada ao tratamento de crianças com dificuldades de alimentação será eficaz se as mães não forem ouvidas, compreendidas e incluídas no processo. O objectivo dos profissionais de saúde que trabalham nesta área deve ser bem-vindo, ouvir, validar os sentimentos envolvidos e compreendê-los como parte do tratamento. A compreensão e o manejo das emoções, crenças e julgamento social podem, em última instância, contribuir para o sucesso do tratamento de crianças com recusa alimentar (Junqueira, 2017a).
Em termos psicossociais, o padrão de alimentação infantil envolve a participação efetiva dos pais como educadores, através de interações familiares e estratégias utilizadas na hora das refeições, como ferramenta no desenvolvimento do comportamento alimentar das crianças (Gillespie & Acterberg, 1989; Ramos & Stein, 2000). Estratégias coercivas podem introduzir interações negativas, pois crianças que são pressionadas ou coagidas a comer, podem perder o interesse na alimentação, mesmo a existência de uma recompensa, resultando em uma resposta oposta. Tanto a recompensa como a coerção são estratégias utilizadas pelos pais como forma de alimentação instrumental (Birch, 1992; Capaldi, 1997). No entanto, o uso de estratégias/punição reforçadas, com alimentos usados instrumentalmente, não oferecem bons resultados a longo prazo e podem promover uma acção negativa para a preferência da criança por alimentos (Birch, Mcphee, Shoba, Steinberg, & Krehbiel, 1987).
Entende-se também que para ser possível estabelecer uma relação saudável entre a criança e a comida, e uma relação confortável entre a mãe (cuidadora) e o bebé, é necessário que os profissionais de saúde considerem a criança inteira. Nesta perspectiva, os sentimentos e emoções da criança perante a comida, assim como as condições do contexto familiar desta criança, devem ser investigados e considerados. A rede de apoio à aversão alimentar do paciente deve ser sistematicamente reforçada, visando tornar os pais parte integrante do tratamento de crianças com dificuldades alimentares.
Assim, é essencial pensar em intervenções com os cuidadores de pacientes pediátricos com dificuldades alimentares, especialmente às mães, considerando a importância de promover espaços de expressão emocional durante o tratamento da criança, que inevitavelmente surgirão ansiedades, inseguranças e medos. A atenção aos sentimentos despertados pode contribuir não só para o tratamento da aversão alimentar, mas também para prevenir outros sintomas mal adaptados que possam surgir por detrás da dificuldade alimentar (Müller et al., 2015).
Embora se saiba que a doença de um membro da família gera um sofrimento significativo na família e que o apoio familiar é essencial para o tratamento das crianças, existem apenas alguns estudos que enfatizam a importância do investimento no cuidado da família do paciente, como mencionado por Melo e Frizzo (2017) em suas declarações sobre este tema. Neste sentido, considera-se que a inclusão do tratamento psicológico pode ajudar o processo de atendimento a crianças com aversão alimentar, pois procura promover o fortalecimento da família e/ou do cuidador primário das estratégias da criança, mas também oferecendo um espaço para a escuta qualificada dos sentimentos despertados nos pais durante o tratamento da criança. Ainda assim, podem ser construídas estratégias psico-educativas atendendo tanto os pais quanto os demais profissionais responsáveis pelo tratamento da aversão alimentar, visando contribuir tecnicamente com a equipe multidisciplinar.
O papel do psicólogo aliado à prática de um fonoaudiólogo visa facilitar a comunicação entre paciente – família – equipe de saúde para um atendimento mais integrado ao paciente e sua família. A psicologia atua como apoio fundamental para um fonoaudiólogo, que necessita de apoio para a reabilitação da criança com transtorno alimentar e desta família, muitas vezes enfraquecida. Acreditamos que a reabilitação de indivíduos com dificuldades alimentares não deve ser dirigida apenas a um único profissional, e não com divisões de tarefas entre especialidades. Devemos ver e tratar o indivíduo como um todo, tendo em conta estas particularidades. Assim, considera-se essencial o trabalho multidisciplinar para resultados positivos no tratamento da aversão alimentar e, nesse sentido, entende-se como essencial a comunicação entre os profissionais envolvidos no que diz respeito aos fatores orgânicos e emocionais comprometidos com essa problemática.