CulturizadaCarne pode criar mais problemas do que resolve
Carne cultivada ou in vitro, também chamada “carne limpa” pelos seus apoiantes, é carne produzida em laboratório utilizando técnicas de bioengenharia.
Em 2013, Mark Post, professor da Universidade de Maastricht, apresentou o primeiro hambúrguer feito de carne cultivada. Desde então, o sonho de poder criar e consumir carne baseada na “agricultura celular”, sem criação de gado, ganhou apoio tanto dos activistas dos direitos dos animais como, sobretudo, dos actores do sector. Foi criado um grande número de start-ups, com muitos patrocinados por grandes nomes da indústria alimentícia. A ambição é a de comercializar carne de bovino, aves ou peixe de cultura a um preço acessível até 2020 ou 2022.
Com este objectivo em mente, em 2018 a US Food And Drug Administration estabeleceu um quadro regulamentar e isto abriu o caminho para a comercialização destes produtos.
Então, a carne artificial é uma verdadeira revolução alimentar ou uma utopia impossível?
Qual será a dieta global em 2050?
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a produção convencional de carne é responsável por uma parte significativa das emissões de gases de efeito estufa (18%) e do uso da terra (30%), bem como do consumo global de água (8%) e energia. A FAO também estima que o consumo de carne irá duplicar até 2050, enquanto a produção de carne já está perto do seu pico. Qual é a solução para este problema?
Segundo Mark Post, “as vacas são muito ineficientes”, com uma “taxa de bioconversão” estimada em 15%. Em outras palavras, para produzir 15 gramas de carne, você precisa de 100 gramas de proteína vegetal. A única maneira de produzir carne de forma sustentável é aumentar a taxa de eficiência.
Diferentes métodos têm sido considerados no passado, como a produção de carne feita de proteínas derivadas de plantas ou insetos. Estas alternativas, porém, nem sempre satisfazem os consumidores devido aos preconceitos culturais e à dificuldade de imitar o sabor e a textura da carne convencional. A carne in vitro poderia ajudar a ultrapassar estes problemas.
Como é cultivada a carne?
Em termos concretos, o primeiro passo é isolar um pequeno número de células musculares satélites de um animal adulto. A função fisiológica dessas células satélites é participar na regeneração muscular: ainda não são células musculares, mas células estaminais capazes de se multiplicar e, sob a influência de certas hormonas, de se diferenciarem em células musculares.
As células satélites são cultivadas em biorreactores, que são recintos estéreis contendo líquidos nutritivos, sob estimulação com factores de crescimento para induzir uma rápida proliferação. Elas são então transformadas em células musculares e montadas mecanicamente em tecido muscular e depois em um bife artificial consumível…
De acordo com o site da Mosa Meat, a empresa holandesa fundada por Mark Post, a produção de carne de cultura reduziria significativamente o impacto ambiental da produção de carne, bem como o risco de doenças infecciosas transmitidas dos animais para os seres humanos. Além disso, a empresa afirma que o sabor da carne de cultura é próximo ao da carne convencional.
A agricultura celular também foi tocada por Paul Shapiro, autor do bestseller Clean Meat: How Growing Meat Without Animals Will Revolutionize Dinner and the World and CEO of the Better Meat Company. Ele afirma que a carne de cultura é a chave para alimentar uma população mundial que atingirá cerca de 9,5 bilhões em 2050, respeitando os animais e preservando o meio ambiente.
Custos ambientais mais elevados do que se pensava originalmente
Como indicado por um estudo de 2011, a carne de cultura pode oferecer muitas vantagens em relação à carne convencional: ela reduziria as emissões de gases de efeito estufa em 78-96% e exigiria 7-45% menos energia e 82-96% menos água. No entanto, pesquisas mais recentes sugerem que, a longo prazo, o impacto ambiental da carne cultivada em laboratório pode ser maior do que o do gado. Ao contrário das pesquisas anteriores, estes estudos consideraram não só a natureza dos gases emitidos, mas também os custos energéticos das infra-estruturas necessárias para a cultura de células.
Animais têm um sistema imunitário que os protege naturalmente contra infecções bacterianas e outras infecções. Este não é o caso da cultura de células, e num ambiente rico em nutrientes, as bactérias multiplicam-se muito mais rapidamente do que as células animais. Para evitar produzir um bife composto por mais bactérias do que a carne, é essencial evitar a contaminação, e isso requer um alto nível de esterilidade.
Na indústria farmacêutica, as culturas celulares são realizadas em “salas limpas” altamente controladas e higienizadas. A esterilidade é mais frequentemente garantida através da utilização de materiais plásticos descartáveis. Isto reduz significativamente o risco de contaminação, mas gera resíduos plásticos, cujo nível nos ecossistemas já é alarmante. Alguns dos materiais de cultura são feitos de aço inoxidável e podem assim ser esterilizados a vapor ou lavados com detergentes, mas estes tratamentos têm também um custo ambiental.
Embora poucos estudos tenham sido feitos sobre o impacto ambiental da indústria farmacêutica, os dados disponíveis sugerem que a sua pegada de carbono pode ser 55% superior à da indústria automóvel.
Importante, não devemos esquecer que o gado cumpre muitas outras funções que não apenas a produção de carne. Ela contribui para a reciclagem de grandes quantidades de resíduos vegetais que não podem ser consumidos pelo homem e produz fertilizantes. Além disso, as pastagens capturam e armazenam carbono. O que os substituirá se a carne for produzida por culturas celulares? Isto significa que é extremamente complexo avaliar o custo ambiental a longo prazo de uma transição da carne convencional para a carne de cultura.
Hormonas anabolizantes e desreguladores endócrinos: riscos significativos
Nos animais, o volume muscular aumenta lentamente, e leva tempo para que as células musculares satélites se multipliquem. Para obter o que um animal produz durante vários anos em apenas algumas semanas in vitro, é necessário estimular continuamente a proliferação das células satélites com factores de crescimento, incluindo hormonas sexuais anabolizantes.
Estas hormonas estão presentes em animais e seres humanos, bem como na carne convencional. Elas estimulam a síntese de proteínas nas células, resultando no aumento da massa muscular. Portanto, podem ser corretamente descritos pela indústria como “fatores naturais de crescimento”. No entanto, a superexposição a elas estabeleceu efeitos deletérios. Na Europa, o uso de hormonas de crescimento na agricultura é proibido desde 1981 pela directiva 81/602. Esta proibição foi confirmada em 2003 pela directiva 2003/74 e validada pela Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) em 2007. Qual será a concentração final destas hormonas na carne de cultura?
Além disso, um número crescente de estudos tem documentado a toxicidade dos produtos plásticos comummente utilizados. Os disruptores endócrinos, compostos que podem interferir com o sistema hormonal e perturbá-lo, podem ser transferidos das embalagens de plástico para os alimentos. Sem surpresas, o mesmo fenómeno tem sido documentado em culturas celulares cultivadas em recipientes de plástico por fertilização in vitro.
Sem o uso de plástico na produção de carne por cultura celular ser rigorosamente controlado, a carne pode ser contaminada com desreguladores endócrinos e outras substâncias antes mesmo de ser embalada.
Nutrição saudável e sustentável também significa educação
Carne cultivada é hoje apresentada como um produto de alta tecnologia que tem o potencial de ser tanto ecológica como moralmente responsável. Mas só se pode tornar uma alternativa à carne tradicional conquistando o mercado mundial – ou seja, sendo acessível aos consumidores e rentável aos produtores, o que requer técnicas de produção de alto volume e baixo custo. Os impactos na saúde e no meio ambiente ainda serão levados em consideração com a transformação da escala de produção?
p> É também importante lembrar que o alto consumo de carne é prejudicial não só para o meio ambiente, mas também para a saúde humana. No entanto, muitos consumidores não estão conscientes ou não aceitam tais conclusões.
Para conseguir uma dieta sustentável e saudável, é portanto essencial melhorar a informação e a educação para estimular um debate informado sobre a questão crucial do consumo de carne.