Gravidez e parto
Descrevemos três casos clínicos de anemia neonatal nos primeiros dias de vida.
Anemia de caso 1 por perda de sangue
Nascido recém-nascido que foi internado por má adaptação neonatal desde a primeira gestação de uma mãe saudável. Gravidez controlada sem complicações. Nascido na idade gestacional de 40 semanas com peso ao nascimento de 3200gr. Parto vaginal eutócico instrumentado. Registo cardíaco fetal normal. Não é necessária ressuscitação ao nascimento, Apgar 9/10, pH do cordão 7,25. Diante da palidez da pele e do desconforto respiratório leve, a hospitalização foi decidida. No controle analítico foi observada hemoglobina de 10,5g/dL, com reticulócitos de 6% e sem elevação da bilirrubina, nem parâmetros de infecção. Não houve incompatibilidade do grupo sanguíneo ou Rh, com Coombs negativo direto e ultra-sonografia normal. Estabilidade hemodinâmica em todos os momentos e assintomática, com boa dieta e ganho de peso adequado. A suspeita clínica era de anemia regenerativa devido a possível perda de sangue pré-natal ou intra-parto, sem qualquer problema na placenta ou sangramento nos vasos cordões umbilicais. A hemoglobina fetal no sangue materno foi de 0,2%, descartando transfusão fetal-materna. Os números de hemoglobina foram aumentando progressivamente sem maiores declínios posteriores.
Transfusão fetal-materna de caso 2
Mulher de 28 anos de idade, primeira gravidez, gravidez controlada sem complicações. Consultada em idade gestacional de 40 semanas +5 dias devido à diminuição dos movimentos fetais de cerca de 4-5 horas de evolução. Padrão sinusoidal no registro cardiotocográfico e ausência de movimentos fetais, não se encontrando em período ativo do parto, assim foi realizada cesárea urgente, sem poder realizar calote pH.
Uma menina nasceu com má aparência geral, sem esforço respiratório, frequência cardíaca indetectável e palidez cutâneo-mucosa generalizada marcada. A ventilação foi iniciada com pressão positiva intermitente por menos de 30 segundos, mas com freqüência cardíaca inferior a 60bpm a paciente foi intubada e ventilada com uma bolsa auto-insuflável. Urgentemente, a veia umbilical foi canalizada e a perfusão de líquidos intravenosos (soro fisiológico) foi iniciada a 15 ml/kg e a adrenalina intravenosa foi iniciada.
Após um primeiro bolus de soro fisiológico e duas doses de adrenalina, foi obtido um batimento cardíaco >100bpm, mas com grande instabilidade hemodinâmica que exigiu doses de adrenalina e fluidos contínuos para manter a freqüência cardíaca >100 bpm. Apgar 0/3/3. Cord pH 7,20, com excesso de bases – 8,1. A análise do sangue aos 30 minutos de idade mostrou hematócrito de 11,7% e hemoglobina de 3,6g/dL, com parâmetros de infecção negativa e acidose metabólica (pH 7,0, pCO2 26 mmHg, HCO3 7,5mmol/L e excesso de bases de -23mmol/L). No caso de anemia grave, o concentrado de eritrócitos foi transfundido a 20 ml/kg em até duas ocasiões. O paciente foi mantido em ventilação mecânica na modalidade assistida controlada, antibioticoterapia IV com ampicilina e cefotaxima, líquidos intravenosos e medicação inotrópica (adrenalina, dopamina, dobutamina) em perfusão contínua nas doses máximas. A radiografia de tórax não mostrou pneumotórax ou outras anomalias malformativas, posição correta do túbulo endotraqueal e cateter venoso umbilical.
Foi mantida em hipotermia passiva (porque inicialmente não atendia aos critérios de exclusão) mas apesar de todos os esforços médicos a instabilidade hemodinâmica estava em progressão, com piora gasométrica progressiva para acidose metabólica grave, produzindo morte com falência de múltiplos órgãos às 5 horas de vida. A necropsia não mostrou malformações ou sangramento interno, e não pôde determinar outras causas de morte além de anemia grave. A morfologia do sangue periférico era normal. Dada a ausência de sangramento activo após o nascimento no recém-nascido e a ausência de lesões sugestivas de hemorragia na necropsia, a transfusão fetal foi suspeita e confirmada pela determinação da hemoglobina fetal no sangue materno de 2,4%. A equação de Kleihauer calculou a transferência de 150ml de sangue fetal para a mãe.
Anemia aplástica congênita do caso 3
Nascido de 24 horas de vida, gravidez controlada sem complicações. Nascido na idade gestacional de 38 semanas, por cesariana, dada a apresentação das nádegas. Peso à nascença de 2400gr. Apgar 9/10. pH do cordão 7,35. Nas primeiras 24 horas de vida, a palidez da pele e das mucosas foi detectada com estabilidade hemodinâmica, mas a sucção regular que condicionou as dificuldades de alimentação. O controle analítico mostrou anemia com valor de hemoglobina de 10,1gr/dl, bilirrubina e reticulócitos normais de 5%, negatividade dos parâmetros infecciosos, grupo sanguíneo e Rh compatível com a mãe, Coombs negativo, ultra-som abdominal e transfontanelar normal, morfologia normal no sangue periférico. Todos os dados sugeriam anemia com possível causa subaguda ou crônica possivelmente secundária à perda de sangue pré-natal ou no momento do nascimento. O valor da hemoglobina fetal no sangue materno era inferior a 0,1%. A anemia progrediu para 9,1g/dL em 48 horas, com estabilidade hemodinâmica, mas com má alimentação e sem ganho de peso, pelo que foi feita a transfusão de concentrado de eritrócitos a 15ml/kg. Após a transfusão houve melhora clínica progressiva com boa nutrição e ganho de peso progressivo, recuperando o valor da hemoglobina em 24 horas de transfusão até 12,5g/dL.
Após duas semanas de vida com ganho de peso progressivo, de cerca de 20gr por dia, e alimentação correta, novamente houve perda de peso com problemas de alimentação e deposição de espuma. No controle analítico, observou-se hemoglobina de 10,5g/dl, baixos reticulócitos, com índice reticulocitário inferior a 1, trombopenia de 91000, neutropaenia com 900 neutrófilos absolutos e acidose láctica. Estes dados levaram à suspeita de anemia arregenerativa. Uma nova transfusão de concentrado de hemácias foi necessária devido à diminuição da hemoglobina de até 8g/dL. O estudo da medula óssea detectou anemia sideroblástica suspeitando de causa genética desta anemia arregenerativa neonatal, possível síndrome de Pearson, à espera de ser confirmada geneticamente.